SANTO PRETO
Cinthia subiu para o ônibus como sempre simpática, era uma moça feliz, não tinha a vida perfeita, mas a vida dela estava perfeita pra ela, cursava Filosofia em São Paulo e trabalhava na biblioteca publica da cidade, não ganhava tão bem, mas dava pra se virar se juntasse o salário do pai e a aposentadoria da mãe.
Tinha suas regrinhas certinhas, cinema uma vez por mês, barzinho com as amigas também e era reservada, porem, sempre sorridente, deu boa noite ao motorista que respondeu secamente, se dirigiu à catraca e enquanto encostava seu cartão no painel eletrônico repetiu a palavra para o cobrador que a mediu e olhou para o lado em desprezo, ela era uma moça bonita, mas suas roupas eram simples e não chamavam a atenção, andava de mochila ao invés de bolsa como as outras moças, não era tão vaidosa mas se cuidava sim, era bonita ao natural.
Já meio chateada se colocou em um acento para uma pessoa de lado com a roleta e apanhou na mochila um desses livros de romances espíritas, e se perdeu nele, sabia que a viagem era longa, mas ela gostava, era onde ela tinha tempo para ler.
O pivete que subiu alguns pontos depois já não era tão simpático, a boa noite dele foi uma coronhada na cabeça do motorista e uma ordem:
- Encosta ali naquela rua, maluco, vou pegar o dinheiro do povo e vou sair, na moral, tenta algo e eu passo geral!
Betinho era um moleque de pele escura, magro de roupa larga e puída, tinha dezessete anos e era garoto de rua, como era denominado pela sociedade, sem estudo, trabalho ou parentes para quem pudesse pedir, aprendeu cedo a arte do crime, esteve em instituições para menores algumas vezes e já estava letrado na faculdade da vida, profissão ladrão, e dos bons.
Quando o motorista encostou, subiu para o ônibus mais um moleque, era o parceiro de Betinho, Dentão, esse já era mais apresentado a bandido, era robusto, mas era de estatura baixa, sentou-se no banco atrás do motorista e encostou o cano gelado da sua pistola automática na costela do condutor e também o cumprimentou:
- Fica na moral cumpadi, nóis vai pegar o que veio buscar e já era, fica de boa que fica todo mundo bem, leva uma e eu espalho o sinhô no busão.
Tinha cerca de vinte pessoas no carro, e todos estavam tentando dar um jeito de esconder suas carteiras e celulares, quando Betinho limpou a gaveta do cobrador e pulou a catraca com os olhos esbugalhados, pra piorar, parecia estar sobre efeito de drogas pesadas, não estava mesmo pra brincadeiras.
Saiu passando a mochila que carregava nas costas e recolhendo toda a sorte de valores, vez ou outra se animava vendo os modelos de Smartphone que alguns jogavam dentro, dinheiro pouco, mas recolheu entre relógios, um notebook e dois tablets bacanas, era horário de saída da faculdade e os “playboy” gostavam de ostentar objetos valiosos.
Um rapaz passou uma nota de vinte reais com as mãos trêmulas e ganhou uma coronhada de presente:
- “Atividade” maluco, to pedindo esmola não, levanta o rabo de cima dos baratos que você escondeu pra não morrer aqui, tá me tirando mermão?
O rapaz ainda tremendo se levantou, em movimento de defesa e embaixo dele estava um celular desses mais caros e um pacotinho pardo de dinheiro, era dia de pagamento e o pensamento dele era, porque não tinha depositado esse salário que agora era dos bandidinhos? Mas já era tarde, eles encontraram:
- Aê dentão, fizemo a boa, o maluco aqui ta com o bolo, estouramo!
- Ai sim eim locão, vamo fica muito loco hoje, vamo ser rei na biqueira!
Betinho se levantou e olhou para Cinthia, ela estava abraçada ao seu livro olhando para ele, estava apavorada, mesmo porque ela não tinha dinheiro e seu celular era simples, Betinho se aproximou e sentou-se ao seu lado com o revolver passado por debaixo do braço:
- Boa noite princesa, passa o celular e a mochila, desculpa aê, em outra situação te chamava pra dar um role, mas agora é atividade, mas não se preocupa não gata, não vou te machucar. Betinho olhou pro celular e para dentro da bolsa de Cinthia, nada de caro, nada de dinheiro, só alguns livros velhos e papeis de bala misturados a notinhas fiscais emitidas, olhou sorrindo para Cinthia e devolveu o celular já sem a bateria e a bolsa:
Pega minha linda, vamu te roubar não, tu é humildade, vai passar dessa.
Dentão percebeu e gritou:
- Aê truta, ta apaixonadão eim, pede o zap da gata vacilão!
Betinho olhou para Cintia ainda sorrindo:
- Se fosse em outra oportunidade pedia memu, sou sujeito homem, a mina é princesa, sem chance de ter uma mina dessas.
-Porque vocês fazem isso? Cinthia perguntou baixinho com a voz embargada segurando as lagrimas.
- Sá cumé gata, vida dura, correria é só o que nóis sabe fazer ta ligada, nóis não tem trampo igual o playboy ali e nem primeiro grau, quem dirá as morau de fazer uma facú igual você, tu é guerrera nega, merece tudo de bom por correr atrás do preju.
Cintia deu um sorrisinho, ninguém jamais tinha valorizado sua luta, e agora, em um ônibus, sendo assaltada, ainda mais pelo assaltante, ironia era pouco.
De repente o ambiente ficou sereno, não se percebias mais os passageiros assustados, o motorista e o cobrador mal educados, Betinho só via Cintia e sentia paz no coração:
- To sentindo um barato estranho, nunca senti isso antes, é amor isso mina?
Quem respondeu não foi Cintia, um Senhor também puído de barba por fazer aproximou-se de Betinho e com a mão em seu ombro acenou a cabeça mostrando seu comparsa lá no banco da frente que estava em um sono profundo:
- Ele está em paz, dormindo, eu queria conversar apenas com você Roberto.
Betinho teria enfiado uma bala no rosto de qualquer um que tomasse a atitude que o estranho tomou, mas estava sereno e calmo também:
-Quem é você mermão, tu sabe que pode levar um tiro sendo folgado assim?
- Não me importo garoto, eu me importo com seu coração, enquanto você e seu companheiro assaltavam essas pessoas, a garota ao seu lado que nem lhe conhece quer a sua paz, quer o seu arrependimento, ela acredita em você Roberto, ela acredita que você é um bom rapaz, assim como sua mãezinha acreditava, nem uma delas tem culpa do que você passou até aqui filho, mas está na hora de mudar, seu coração está aberto e você ainda tem sim saída, desce desse ônibus e vai em paz, você tem o coração puro, está escurecendo ele, mas tem tempo de mudar e deixar essa vida.
Betinho estava paralisado, estava chorando com o coração apertado, sua já falecida mãe gostava de toda noite antes de colocá-lo para dormir de chamá-lo de reizinho, sempre imaginou seu filho crescendo e se formando e o tirando da vida difícil, ela o amava e torcia para que seu filho não tomasse o caminho que escolheu, ela queria que ele fosse um rapaz de bem, e ele foi, até o dia de seu falecimento por falta de remédios de um câncer que até podia ser curado, mas eles eram invisíveis para a sociedade.
- Se eu descer, como fica o meu mano?
-Ele vai ser preso Roberto, pode até ser morto, e se você não tomar a atitude certa, o destino dele será o seu, ele não tem mais jeito, você ainda tem, desiste dessa vida meu filho, ache a paz no seu coração.
Betinho colocou seu revolver na cintura e olhou para Cinthia que estava adormecida, mas estava com um sorriso sereno na face e ainda se deu para ouvir palavras saindo de seus lábios:
- Vamos nos ver de novo Roberto, eu prometo, vai embora, tente dormir, amanha tudo vai estar mais claro.
Betinho lhe beijou a face, se levantou, consentiu um abraço do senhor puído, deixou mais uma lagrima cair, desta vez de alegria, sentia uma paz enorme na alma, caminhou para a saída do ônibus olhando para as pessoas dormindo em seus acentos e desceu, deu poucos passos e olhou para traz com uma voz de comando lhe mandando parar, olhou e viu um policial com uma arma na mão apontada para ele e viu o rapaz em quem tinha dado uma coronhada entrar na frente e dizer ao policia:
- O menino não tem nada a ver seu guarda, o ladrão estava sozinho...
Betinho olhou confuso para o rapaz que o olhou de volta e sorriu gesticulando que ele fosse.
Enquanto retomava seus passos, enfiou a mão no bolso de sua calça e retirou um pedaço de papel que estava com os seguintes dizeres:
“Biblioteca de São Paulo abre vaga para jovens de 15 a 18 anos para trabalho de auxiliar de escritório“ e no verso, um numero de celular escrito em caneta.
“foi bom te conhecer, vamos nos rever em breve, Cinthia”.
- FIM -